SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Quebra de sigilo, obstrução de Justiça e o possível desrespeito a outras medidas cautelares podem estar por trás da nova prisão do tenente-coronel Mauro Cid, ocorrida na sexta-feira (22) depois de oitiva em que negou ter sofrido coação da Polícia Federal para dizer o "que não aconteceu" em seu acordo de colaboração premiada.
O depoimento se deu após o vazamento de áudios, publicados pela revista Veja, em que Cid afirmava ter sido coagido. Na oitiva, o ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro (PL) assumiu ser ele na conversa, negou uma possível pressão da polícia e afirmou que as declarações foram feitas em um contexto de "desabafo".
O mandado que autorizou a nova prisão está sob sigilo, mas o STF (Supremo Tribunal Federal) informou que a detenção do militar ocorreu em razão de descumprimento de medidas cautelares e por obstrução da Justiça. A homologação da delação está sob análise.
Integrantes da PF, por sua vez, afirmam que o militar feriu o acordo de confidencialidade da colaboração com o objetivo de atrapalhar a investigação que envolve, dentre outros possíveis crimes, uma tentativa de golpe de Estado.
Isso teria sido considerado um descumprimento de medida cautelar e tornado o militar suspeito de tentar obstruir a Justiça.
Diante dessas informações, especialistas ouvidos pela reportagem comentam as bases jurídicas que podem ter motivado a nova prisão do tenente-coronel.
Para Maurício Zanoide, professor de processo penal da USP, Cid quebrou uma norma geral de sigilo que regula o instituto da colaboração premiada, além de ter cometido novo crime com os áudios vazados.
Segundo o especialista, uma regra geral prevista na lei de organizações criminosas (lei 12.850/2013) prevê que o colaborador precisa manter o sigilo da delação.
"A lei exige que o colaborador não possa --tirando pessoas já envolvidas como advogado, juiz, promotor-- quebrar o sigilo com qualquer outra pessoa, inclusive familiares", afirma Zanoide.
O descumprimento da premissa geral, afirma o especialista, justificaria a prisão.
Além disso, com o áudio vazado, Cid teria incorrido em novo crime de impedimento ou embaraço de investigação envolvendo organização criminosa. Previsto no parágrafo primeiro do artigo 2º da lei de organizações criminosas, a pena para a infração é de reclusão de 3 a 8 anos e multa.
Para o especialista, a situação do militar foi agravada pelo fato de ele não explicar à PF com quem teria falado no caso da conversa vazada. "Ele está escondendo um dado que pode atrapalhar a investigação", afirma.
Segundo Helena Lobo da Costa, professora de direito penal da USP, há base jurídica para a nova prisão a partir do argumento de descumprimento de medida cautelar. O áudio vazado pode ter acarretado a quebra de acordos específicos previstos na colaboração, que está sob sigilo.
A especialista, entretanto, afirma não vislumbrar obstrução de Justiça no caso, uma vez que não houve nenhuma diligência frustrada por causa do comportamento de Cid.
"O ato de falar, no âmbito particular, que foi pressionado a dizer o que não devia não vai atrapalhar a investigação, sobretudo quando isso foi desmentido".
Para Helena, o enquadramento em obstrução de Justiça seria uma interpretação muito ampla do crime previsto na lei. "A obstrução precisa estar relacionada a atos específicos de investigação", afirma.
Luísa Walter da Rosa, mestre em direito do Estado pela UFPR (Universidade Federal do Paraná) e autora de livros sobre acordos penais e colaboração premiada, afirma que o principal argumento para a nova prisão de Cid é, provavelmente, o descumprimento de medidas cautelares.
A especialista lembra que a revogação de prisão preventiva anterior do militar, solto em setembro de 2023, estava condicionada a medidas como a proibição de utilização de redes sociais e de se comunicar com outros investigados.
"Pode ser que o vazamento dos áudios tenha sido considerado o descumprimento de contato com alguém. Tanto é que, além da nova prisão de Cid, houve cumprimento de mandado de busca e apreensão na casa dele", afirma.
"Provavelmente o Supremo está interessado em saber com quem ele teria dialogado para entender a extensão dos efeitos desse contato."
Os três especialistas afirmam não haver conflito jurídico no fato de Moraes mandar prender Mauro Cid após o vazamento dos áudios, que também tinham críticas ao ministro.
"Fatos criados depois que a causa já está definida não são suficientes para afastar o juiz. Se isso acontecesse, pessoas escolheriam com quem seriam julgadas", afirma Zanoide.
FONTE: FOLHA DE S.PAULO