SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A frase mais marcante do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) sobre as mortes da Operação Verão, quando disse que não estava "nem aí" para denúncias de abusos cometidos por policiais militares feitas por moradores e entidades, foi seguida de uma retomada das ações letais na Baixada Santista. A operação vivia um período de dez dias sem vítimas, mas as mortes recomeçaram logo após a declaração.

Um levantamento dos óbitos na região desde dezembro mostra coincidências entre as datas mais letais da operação, os assassinatos de PMs e declarações do governador e do seu secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite. Iniciada para reforçar a segurança no litoral durante a alta temporada, a Verão começou em dezembro mas foi reforçada e mudou de escopo no início de fevereiro, após a morte do soldado Samuel Wesley Cosmo, da Rota (espécie de tropa de elite da PM).

Dessa reformulação até a última segunda-feira (1º), quando foi encerrada, a operação deixou saldo oficial de 56 mortos, tornando-se a ação mais violenta na história da PM paulista desde o massacre do Carandiru, de 1992.



Questionado, o governo paulista disse que, na ocasião, "o governador foi claro ao destacar que a atual gestão não tolera excessos nas forças de segurança e que todos os casos comprovados de desvio de conduta serão exemplarmente punidos". A administração estadual também afirmou que "associar a fala do governador a novas mortes é estabelecer uma correlação irresponsável que tenta sustentar uma proposição de causa e efeito entre eventos distintos".

No dia 8 de março, uma sexta-feira, após ser questionado sobre uma queixa enviada ao Conselho de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas) por causa da escalada de violência policial, Tarcísio afirmou que o governo tinha "muita tranquilidade" em relação à operação e declarou: "O pessoal pode ir na ONU, pode ir na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não tô nem aí".

No dia seguinte, um policial militar ficou ferido com dois tiros no braço e, em seguida, um homem foi morto por PMs durante as buscas pelo autor dos disparos no Morro José Menino, em Santos. Outras 18 pessoas morreram até o fim daquele mês —entre elas, Edneia Fernandes Silva, 31, mãe de seis filhos.

Antes do "tô nem aí" de Tarcísio, o último caso com mortes na operação havia ocorrido em 27 de fevereiro. Cinco pessoas foram mortas por PMs num caso em São Vicente: dois adolescentes de 17 anos, um jovem de 18, um homem de 32 anos e outro de 24, que morreu no hospital dias depois.

O caso foi denunciado num relatório, feito pela Ouvidoria das Polícias e por 12 organizações da sociedade civil após ouvirem testemunhas e familiares das vítimas, como uma execução sumária. "Apesar da alegação de troca de tiros, 'nenhum policial restou lesionado'. O delegado do caso declarou que, em função da insegurança do território, não foi possível acionar a perícia", diz o documento, sobre o que classificou fragilidades na investigação.

O relatório também cita uma reportagem do UOL que ouviu testemunhas alegarem que as vítimas estavam desarmadas.

DIA SEGUINTE À MORTE DE PM FOI O MAIS VIOLENTO EM 11 ANOS

A cronologia da Operação Verão mostra que a data com mais mortes pela PM foi 3 de fevereiro. É o dia seguinte ao assassinato do soldado Cosmo, que integrava os quadros da Rota.

Sete pessoas morreram pelas mãos de PMs em Santos, São Vicente e Guarujá. Os dados oficiais da SSP mostram que aquele foi o dia com maior número de mortes provocadas pela PM na Baixada Santista em toda a série histórica, que teve início em janeiro de 2013.

Os casos do dia 3 incluem um adolescente de 16 anos morto por um policial que estava de folga. As ações que resultaram em mortes começaram durante a madrugada, por volta das 2h, ou cerca de nove horas após a morte de Cosmo.

Uma das primeiras vítimas do dia mais violento da Baixada Santista foi o catador de lixo José Marcos Nunes da Silva, 45 —morto por policiais da Rota às 2h17, segundo o registro oficial.

Vizinhos contam que ouviram seus gritos implorando pela vida, e a família o descreve como um usuário de drogas que não tinha dinheiro nem capacidade para portar uma arma de fogo. A Folha conversou com colegas de trabalho que confirmaram que ele trabalhava no lixão, ao lado da favela onde morreu.

A reportagem também assistiu a um vídeo gravado por uma câmera de segurança cerca de uma hora antes da morte de José Marcos, no qual ele encontra sua filha e o genro e aparenta estar sob efeito de drogas.

O levantamento mostra que o número de mortes por intervenções policiais na região estava em patamares muito mais baixos antes da primeira fase da Operação Verão. A letalidade teve alta poucos dias antes da morte do soldado Marcelo Augusto da Silva, o primeiro PM morto na região neste ano.

Há também outras coincidências entre as declarações oficiais e as ondas de morte ao longo da operação. O dia 7 de fevereiro, data do assassinato do cabo José Silveira dos Santos, teve também a morte de seis pessoas pela PM.

Na véspera, Tarcísio havia dito numa entrevista em Milão, na Itália, que a polícia estava agindo "com muito profissionalismo" e serenidade.

O cabo da PM foi morto na manhã do dia 7 durante um patrulhamento em Santos. Cinco das seis mortes em ações policiais ocorreram após a morte dele, em Itanhaém, São Vicente e Cubatão.

O relatório da Ouvidoria e órgãos da sociedade civil também faz denúncias sobre as mortes daquele dia. Segundo o documento, entre as vítimas de 7 de fevereiro estão dois jovens, de 20 e 24 anos, que estariam desarmados ao serem abordados por policiais da Rota.

Um deles trabalhava como entregador numa empresa de colchões, e o outro era pai de dois filhos e deficiente visual —cego de um olho e com 20% da visão do outro—, diz o relatório.

Já as mortes do dia 27 de fevereiro, terceiro dia mais letal da operação, foram precedidas por uma declaração marcante de Derrite: no dia anterior, em entrevista à Jovem Pan, ele havia garantido que as ações policiais iriam continuar e que "a criminalidade [na região de Santos] é muito mais agressiva que o normal".

O ouvidor das polícias de São Paulo, Cláudio Aparecido da Silva, diz que as declarações de autoridades podem influenciar o comportamento da tropa nas ruas. "Não descarto, em nenhuma hipótese, que a declaração do governador possa ter influenciado, sim, o comportamento dos policiais", disse o ouvidor. "Afinal de contas, é a maior autoridade do estado. Ao fim e ao cabo, é o chefe supremo da força policial."

REGISTROS MOSTRAM 62 MORTOS APÓS MORTE DE PM

Apesar da contagem oficial de 56 mortos na operação Verão, os números publicados pela própria SSP (Secretaria de Segurança Pública), somados aos casos noticiados pela imprensa em março, mostram um número de mortes maior.

Foram ao menos 62 pessoas mortas por PMs em toda a Baixada Santista desde a morte do soldado Cosmo. Para chegar a esse número, a reportagem somou os registros oficiais de mortes por intervenção policial até o fim de fevereiro, publicados em site oficial, com o casos publicados pela imprensa após confirmação da SSP no mês de março.

Estão incluídas duas mortes que envolveram policiais de folga —sem as quais o número total de mortes continua acima da contagem oficial.

Sobre isso, a SSP afirmou "foram registradas 56 ocorrências de mortes caracterizadas como mortes decorrentes de intervenção policial (MDIPs) desde o dia 3 de fevereiro [mesma data usada como referência pela Folha] no âmbito da Operação Verão".

"Estas mortes foram ocasionadas pela reação dos suspeitos à ação das forças policiais no combate ao crime organizado e na proteção das pessoas. Todas as ocorrências dessa natureza são rigorosamente investigadas pelas polícias Civil e Militar, com a supervisão das respectivas corregedorias e o acompanhamento do Ministério Público e do Poder Judiciário", afirmou a secretaria. "Outros delitos registrados no período são apurados pelas respectivas unidades de polícia judiciária da região."

FONTE: FOLHA DE S.PAULO